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Texto na íntegra da aula magna do Cardeal Ravasi na PUC-Rio

Ética e Sustentabilidade
18/04/2016

No último dia 8 de abril, o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, ministrou a aula magna na PUC-Rio. Com o tema “Ética e Sustentabilidade”, o cardeal refletiu sobre a carta encíclica do Papa Francisco, a Laudato si’. A aula magna marcou a abertura oficial do ano letivo na Universidade e fez parte da programação do Pátio dos Encontros, que ocorreu de 6 a 8 de abril no Rio de Janeiro com o objetivo de promover o diálogo entre cristãos e não cristãos.

Texto na íntegra da aula magna do Cardeal Ravasi

 

ética e sustentabilidade

 

Cardeal GIANFRANCO RAVASI

Presidente do Pontifício Conselho da Cultura

 

é um vocábulo que se tornou quase um distintivo dos nossos dias, até transformar-se infelizmente num estereótipo que enche as bocas, mas deixa indiferentes as mãos e, portanto, o compromisso. Refiro-me ao termo sustentabilidade, um termo muitas vezes repetido e declinado em várias formas (índice, código, balanço de sustentabilidade) e que, porém, registra opostamente um dado por vezes dramático, o da exploração insensata e egoísta dos bens que Deus destinou universalmente à humanidade e que são, ao contrário, ou monopolizados apenas por alguns ou gastos insensatamente (pense-se apenas na água) ou feridos através da poluição ou da devastação ambiental.

            Precisamente na abertura da Bíblia, nas páginas dedicadas à criação, estão duas afirmações fundamentais. A primeira é que – diferentemente da cultura grega – reconhece o relevo que a materialidade tem também para a criatura humana: «O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo» (Gen 2,7). No fim da sua existência: «o pó voltará à terra de onde saiu e o espírito voltará para Deus que o concedeu» (Eclesiastes 12,7), «até que voltes à terra de onde foste tirado; porque tu és pó e ao pó voltarás» (Gen 3,19). Entre a terra e a humanidade existe, portanto, uma fraternidade radical, uma parentela estreita que, contudo, muitas vezes esquecemos e violamos.

            A segunda afirmação indica um outro aspecto que nos distingue da materialidade. O Criador, de fato, impõe este compromisso ao homem e à mulher: «Crescei, multiplicai-vos, enchei e submetei a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra.» (Gen 1,28). A criatura humana recebe de Deus uma dignidade de soberania delegada sobre o que foi criado. Na realidade, os dois verbos hebraicos usados contém um significado específico e sugestivo: kabash - “submeter” originariamente indica a instalação num território que deve ser explorado e conquistado, enquanto radah - “dominar” é o verbo do pastor que guia o seu rebanho.

Trata-se, certamente, de um primado que infelizmente o ser humano muitas vezes exerceu de modo tirânico e não como uma tarefa, que é especificada por uma ulterior ordem do Criador, assim formulada: «O Senhor Deus levou o homem e colocou-o no jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar» (Gen 2,15). é interessante notar, também neste caso, que a atividade própria da humanidade é expressa com dois verbos hebraicos - ‘abad e shamar – que contém um dúplice significado. O primeiro é explícito: operar, transformar, investigar e tutelar as potencialidades da natureza, através da atividade laboral e científica. O segundo aspeto está no fato que os dois verbos indicam também o “servir” cultual e o “observar” a lei divina, dois componentes fundamentais da aliança entre o Senhor e Israel.

            Existe, portanto, uma espécie de aliança primária “natural” entre o Criador e a humanidade que se exprime na tutela e na transformação do que foi criado. Um pacto que muitas vezes o ser humano quebra, devastando e ocupando brutalmente a terra. é sugestiva uma parábola árabe, que se move exatamente nesta linha. «No início, o mundo era um jardim florido. Deus, criando o homem, disse-lhe: cada vez que realizares uma ação má, farei cair sobre a terra um grão de areia. Os homens não fizeram caso. Que significado teriam cem mil grãos de areia num imenso jardim florido? Passaram anos e os pecados humanos aumentavam; torrentes de areia invadiram o mundo. Nasceram assim os desertos, que de dia para dia cresceram. E Deus continua ainda hoje a advertir os seres humanos dizendo-lhes: não reduzais o meu jardim florido a um imenso deserto!».

            Esta parábola amarga pinta, de modo luminoso, a crise do planeta. Felizmente, uma onda de arrependimento e remorso está emergindo sobre os termos de ecologia e sustentabilidade, temas que entraram finalmente na agenda não só da Igreja através da encíclica Caritas in veritate de Bento XVI e a Laudato si’ de Papa Francisco, mas também dos Estados, dos organismos internacionais e das próprias estruturas econômicas. Em meados dos anos Setenta, através de um relatório do então Secretário Geral da ONU, Dag Hammarskjöld, o modelo de desenvolvimento dominante começou e foi submetido à crítica. Foi, contudo, apenas em 1987 que a “Comissão mundial sobre o ambiente e  desenvolvimento” (conhecida como “Comissão Bruntland”) definiu, de modo claro e amplo, o conceito e o programa de desenvolvimento sustentável, como «processo de mudança pelo qual a exploração dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e as mudanças institucionais sejam coerentes com as necessidades futuras e não só com as atuais».

            Naquele texto se introduziam também elementos éticos e sociais para uma «efetiva participação dos cidadãos no processo de decisão e uma maior democracia a nível das escolhas internacionais», de modo a poder «satisfazer as necessidades fundamentais de todos e estender a todos a possibilidade de atuar as próprias aspirações a uma vida melhor». Nesta linha, em dezembro 2002, a Assembleia geral da ONU proclamou o arco 2005-2014 como o “decênio da educação para o desenvolvimento sustentável”. Fundamentalmente – a nível sociocultural geral – consiste em fazer compreender que a sustentabilidade é um dos direitos humanos capitais. é conhecido, de fato, que agora, geralmente, se costumam elencar quatro “gerações” de direitos.

            Os direitos da “primeira geração” são os civis e políticos (vida, dignidade pessoal, liberdade). Direitos de “segunda geração” são os econômicos, sociais, culturais descritos na Declaração universal dos Direitos humanos (1948): como saúde, trabalho, instrução e assim por diante. De “terceira geração” são os direitos de solidariedade que respeitam, sobretudo, os assuntos vulneráveis: paz, equilíbrio ecológico, defesa ambiental e dos recursos nacionais, autodeterminação dos povos. Enfim, à “quarta geração” pertencem os novos direitos relativos ao campo das manipulações genéticas, da bioética e das novas tecnologias da comunicação. é, portanto, importante enquadrar a sustentabilidade no horizonte mais vasto da dignidade humana, da moral social e dos próprios princípios religiosos.

Isto é sublinhado várias vezes na encíclica Laudato si’ que usa ao menos por uma dúzia de vezes a terminologia “sustentável/sustentabilidade”. O Papa Francisco parte da Carta da Terra, promulgada em Aja a 29 de Junho de 2000: «Como nunca antes na história, o destino comum obriga-nos a procurar um novo início (...). Que o nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar duma nova reverência face à vida, pela firme resolução de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta em prol da justiça e da paz e pela jubilosa celebração da vida» (n.207). Por isso «o urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral» (n.13).

Certamente o Papa está consciente dos riscos que o uso previsto e acostumado do termo “sustentabilidade”, como já sublinhamos na abertura, e o próprio «discurso do crescimento sustentável se torne um diversivo e um meio de justificação que absorve valores do discurso ecologista dentro da lógica da finança e da tecnocracia» (n. 194). Por isso, é necessário solicitar «criatividade capaz de fazer reflorescer a nobreza do ser humano, porque é mais dignificante usar a inteligência, com audácia e responsabilidade, para encontrar formas de desenvolvimento sustentável e equitativo, no quadro duma concepção mais ampla da qualidade de vida» (n.192).

Partimos da visão genesíaca da criação; relemo-la também através da concepção muçulmana e introduzimos o empenho que a Igreja católica propõe aos cristãos e também a todos os homens de boa vontade. Concluímos esta consideração essencial sobre o nexo entre ética, teologia e sustentabilidade, com uma parábola moderna que é evocada pelo filósofo Martin Heidegger, numa das suas obras mais relevantes Ser e tempo (1927). Trata-se de uma recriação livre dos elementos míticos gregos. Protagonista é uma deusa com nome emblemático de “Cuidado”, sinônimo do nosso termo “Sustentabilidade”.

Atravessando um rio, ela recolheu a lama da margem e plasmou uma figura humana. Júpiter infundiu-lhe o espírito e tornou-a uma criatura vivente. Cura e Júpiter puseram-se a litigar sobre quem tinha direito a impor-lhe o nome e, portanto, o direito de propriedade sobre a pessoa humana. A este ponto reclamou o seu poder também a deusa Terra da qual o ser humano tinha sido feito. Os três recorreram a Saturno, o deus juiz, que emitiu esta sentença: «Tu, Júpiter, que lhe destes o espírito, no momento da morte receberás o espírito. Tu Terra, que lhe destes o corpo, receberás o corpo. Mas enquanto a criatura humana viver, estará sob tutela e a jurisdição de Cura». Eis porque a sustentabilidade deve ser uma espécie de grande protetor que vigia sobre a humanidade, sobre a sua história e sobre a sua evolução.


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