A tragédia que se abateu sobre o Rio de Janeiro mostra que não há mais tempo a perder: é preciso superar velhos tabus e adotar, com urgência, uma política firme e responsável de remoção das pessoas que vivem em áreas de risco
O amanhecer no Rio de Janeiro na terça-feira 6 foi estranho sob todos os aspectos. Não havia ruído de carros, as ruas estavam vazias e as lojas fechadas. Em muitos bairros, o que era calçada tinha virado um amontoado de lama, avenidas tinham se alinhado à Lagoa, crateras se abriram no solo, a chuva que caíra forte durante a noite ainda castigava a cidade e o vento varria o nada – porque era o nada que ocupava o espaço público do mais belo cartão-postal do País. O Rio entrara
Não há registro na história recente das grandes metrópoles de uma pane urbana paralela. Um governador e um prefeito repetiam à exaustão o pedido para que as pessoas não saíssem de casa. Pela televisão e pela internet o carioca viu a destruição que o temporal tinha causado. Além das enchentes e do caos urbano, o pior: pessoas tinham morrido. Noventa por cento das quase 200 pessoas mortas até a sexta-feira 9 foram engolidas pela terra que deslizou do alto dos morros em que moravam. Em Niterói, até o final da tarde da sexta-feira, 111 corpos haviam sido resgatados e os bombeiros estimavam em cerca de 200 o número de pessoas ainda soterradas.
Não foi a primeira e não será a única se a questão não for enfrentada com coragem. Se, ao longo de décadas, as autoridades não tivessem negligenciado a urgência da desocupação das áreas de risco no Rio, hoje não estaríamos lamentando a perda de tantas vidas. É preciso remover todos os moradores de encostas e beiradas de rios urgentemente. “Sabe por que essa remoção é urgente? Porque a qualquer momento podem ocorrer novos deslizamentos, devido a novas chuvas ou ao efeito retardado das chuvas que já caíram e infiltraram os terrenos”, alerta Leonardo Becker, engenheiro civil especializado em geotecnia e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Lixo e entulho nas encostas são um perigo, e nossas favelas têm essa característica”, disse o ex-presidente da Associação Brasileira de Mecânica dos Solos e professor de engenharia civil da PUC/RJ Alberto Sayão. “As áreas de risco já estão mapeadas. Só falta o governo remover quem vive nelas”, acrescenta. Segundo o vice-governador do Rio, Luiz Fernando Pezão (PMDB), “realizar as remoções é um enfrentamento que não é mole” porque esbarra, principalmente, em duas dificuldades: “a burocracia e a demagogia.” Ele diz que apenas a palavra “remoção” provoca arrepios em muita gente. Mas, para preservar vidas, é necessário superar um tabu que, ao que tudo indica, teria começado a partir das ações do governo de Carlos Lacerda, no início dos anos 1960, que retirou, na marra, os habitantes das favelas da zona sul e mandou-os para bem longe: a Cidade de Deus e Bangu. O problema é que essa população foi abandonada nas fronteiras urbanas, sem nenhuma infraestrutura, o que gerou comunidades ainda mais sofridas e violentas, como retrata o filme “Cidade de Deus”. A história ensina que remover, no sentido urbano, não é apenas tirar de um lugar e colocar em outro. “Ao longo dos anos, a missão da ocupação do solo urbano não foi tratada com a devida seriedade e nada justifica a incapacidade do poder público de impedir a construção em áreas de risco”, adverte o governador Sérgio Cabral. “É muita, muita, muita demagogia. De ONGs, de políticos, de gente que diz que defende os direitos humanos. Mas que direito? De morrer numa encosta?”, completa o vice Pezão. “Em três anos e três meses de governo Sérgio Cabral nós removemos 7.200 famílias, ou seja, mais de 30 mil pessoas.”
A desculpa usada por seguidos governos para explicar uma política absolutamente eleitoreira e permissiva é a resistência da população em abandonar um lugar que é próximo ao emprego, à escola e aos amigos. Segundo o presidente do Movimento Popular de Favelas, William de Oliveira, também ex-presidente da Associação dos Moradores da Rocinha, a maior favela do País, isso mudou. “Não dá mais para continuar contando mortos
Nesse momento, a prioridade é “salvar vidas.” Se alguém disser que as escolas municipais não são confortáveis para abrigar os que serão removidos, vai ouvir do prefeito um sonoro “Dane-se, pelo menos está seguro.” De acordo com o presidente da Federação das Favelas do Rio (Faferj), Rossino de Castro Dinis, existem 942 favelas na capital fluminense, totalizando quase dois milhões de habitantes. “As pessoas não podem ser retiradas de casa e amontoadas
Na verdade, como disse a pesquisadora Suzana Pasternak no livro “Cidade (i)legal” (Mauad Editora), “o Estado burguês” se debate no dilema de defender a propriedade privada de um lado e cuidar do bem-estar da população, do outro. Para ela, a armadilha é a seguinte: “Primeiro, há a invasão, a ocupação coletiva de glebas ociosas” e, depois, “o governo é colocado perante o fato consumado.” E aí se vê obrigado a levar luz, água, saneamento, etc. Ou seja, acaba oficializando a invasão. Por isso, a política de remoção não termina com o reassentamento digno. “Tem que remover e impedir que elas voltem para as antigas áreas de risco ou habitem outras”, frisa o pesquisador da Coppe/UFRJ, Moacyr Duarte.
Também são inaceitáveis as frequentes desculpas referentes à surpresa em relação às chuvas inesperadas, como vimos recentemente
Por fim, nunca é demais lembrar a união de forças para socorrer uma cidade em estado de calamidade, como está o Rio de Janeiro, sede da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016. Os governos estadual, municipal e federal deram as mãos para tomar atitudes rápidas. Pelas contas do prefeito e do governador, são necessários R$ 370 milhões para realizar obras de drenagem e contenção de encostas. O presidente Lula liberou, na quinta-feira 8, por meio de uma medida provisória emergencial, R$ 200 milhões. Além da afinidade dos três níveis de poder na questão da liberação de recursos financeiros, a tragédia do Rio pode representar um
marco na política de ocupação do solo urbano. Assim como o governador e o prefeito, o presidente Lula também se manifestou a favor das remoções com responsabilidade e até os representantes dos moradores dos morros e das encostas já admitem que a retirada dessas áreas é inadiável. A verba é fundamental. Porém, mais que ela, é necessário agir rápido para que nunca mais venhamos a chorar a morte por soterramento de um menino como Marcus Vinicius Vieira França da Mata, 8 anos, cujo único delito era morar, com a família, numa área de risco num lugar condenado que ainda tem o nome de Morro dos Prazeres.