Isto É
Revista: Istoé
Data: Quarta-feira, 20 de outubro de 2010
Seção: Comportamento
Página: 82
Autor: Fabiana Guedes, Mônica Tarantino, Patrícia Diguê e Wilson Aquino
Foto: ___
Os sobreviventes
18/10/2010

Depois do sucesso na espetacular operação de resgate, os mineiros terão de recomeçar a vida. Para superar o trauma, podem extrair lições de quem sobreviveu a situações extremas

 

Quando Luis Urzúa, 54 anos, o último dos 33 trabalhadoresresgatados de uma mina a quase 700 metros de profundidade, subiu à superfície, às 21h55 da quinta-feira 14, o acampamento Esperanza, no deserto do Atacama, explodiu de alegria.
Terminava ali o pesadelo de 70 dias dos mineiros e de suas famílias, seguido ao vivo por cerca de um bilhão de pessoas.

Havia quase 24 horas que os olhos do planeta estavam voltados para o Chile, ávidos por acompanhar o espetacular resgate – atenção que talvez o país só tenha ganho quando sediou a Copa de 1958. Com a ajuda de câmeras na mina e imagens geradas em pool no solo para canais de tevê de todo o globo, cerca de 1.500 jornalistas reportaram o triunfo de uma das mais complexas operações de salvamento já realizadas, a maior do gênero envolvendo a arriscada atividade da mineração.

Ali mesmo, sob o céu estrelado do Atacama, Urzúa, uma das lideranças dos mineiros, desandou a falar. Contou ao presidente chileno Sebastián Piñera um pouco do martírio do confinamento, sobretudo nos primeiros 17 dias que se seguiram ao desmoronamento que fechou a saída da mina. Nesse período, não se sabia que os mineiros estavam vivos. “Tínhamos pouca comida”, relatou Urzúa. “No final (daqueles dias), estávamos comendo a cada 48 horas para deixar algo para depois.” Sua dieta eram duas colheradas de atum, um copo pequeno de leite, metade de uma bolacha e pedaços de pêssego. O que se viu, porém, a partir da localização de “los 33” foi uma irretocável operação de manutenção de seus corpos e espíritos até que fosse possível resgatá-los. Tanto que, quando brotaram da terra, um a um, a bordo da cápsula Fênix 2, o mundo se surpreendeu por não ver moribundos saindo do que poderia ter sido suas covas. Os mineiros surgiram sorridentes e barbeados, bem dispostos, alguns até eufóricos. “Chi-Chi-Chi, le-le-le, mineros de Chile”, gritou Mario Sepúlveda, 39 anos, o segundo a ser resgatado, regendo o coro de operários que atuava do lado de fora do fosso de apenas 66 centímetros de diâmetro pelo qual a Fênix fez as viagens rumo ao centro da Terra. Apelidado de “Super Mario”, ele tornou-se o mais famoso dos 33 por ter virado o apresentador oficial do grupo ao descrever o dia a dia no subsolo.

A operação foi um sucesso sob todos os aspectos. Mas há algo que o planejamento irretocável não tem como garantir. Superada esta etapa, os sobreviventes da mina de San José terão de enfrentar e a nova vida aqui fora – e a si mesmos. Os mineiros tiveram de reinventar um cotidiano no subsolo, conviver com a perspectiva de morrer, com o calor intenso e com a fome. Essa experiência, infelizmente, não se encerra com o salvamento e o desmanche do acampamento Esperanza. “A euforia da libertação não é suficiente para eliminar o trauma. Eles vão ter de encarar a vida como ela é, com todas as suas sequelas”, diz o psiquiatra Jairo Werner, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). É nessa hora que as lições de outras pessoas que também passaram por dramas extremos podem ser valiosas.

Os 33 mineiros começaram a ouvi-las ainda na escuridão da mina San José. Lá em cima, à luz do sol do Atacama, estiveram quatro dos 16 uruguaios sobreviventes do episódio conhecido como a Tragédia dos Andes. Foram ao Chile prestar solidariedade, mas, sobretudo, falar aos mineiros da importância de se organizarem lá embaixo. Essa providência, contaram, foi um dos motivos para terem sobrevivido 72 dias nas montanhas geladas a 30 graus abaixo de zero em 1972, quando o avião em que viajavam se chocou com a Cordilheira dos Andes. Havia 45 pessoas a bordo e 29 morreram. Dez dias depois do acidente, os 16 restantes ouviram pelo rádio que a busca por eles havia se encerrado. Para continuar vivos, tiveram de superar o tabu de comer carne humana. “Isso é algo que impressiona quem não sabe o que são 30 graus abaixo de zero e não sabe o que é ver um amigo morrer em seus braços”, diz o cardiologista Roberto Canessa, um dos sobreviventes. Os uruguaios foram salvos depois que dois dele se aventuraram pela cordilheira até encontrar ajuda.

Resgatar a rotina, porém, foi um processo bem mais longo. “Levei mais de um ano para me inserir na sociedade”, diz Eduardo Strauch, outro sobrevivente. “O tempo passava e eu não me acostumava. Ninguém sabia como lidar comigo, me superprotegiam, me sufocavam.” Ele achava a vida insossa, deprimente e incompreensível. Hoje, diz, precisa retornar à montanha de tempos em tempos para se reabastecer contra a vaidade e a vida cotidiana. Fernando Parrado, outra vítima, preferiu não guardar nenhuma lembrança do local. “Aceito tudo e não olho para trás”, diz ele, que só resolveu fazer uma palestra sobre o tema 20 anos depois do acidente.

Também parte do planejamento da operação de resgate chilena, a observação da saúde física e psicológica dos mineiros será uma oportunidade rara de avançar no conhecimento das reações do corpo e da mente de pessoas submetidas a situações extremas. Uma das explicações mais buscadas é entender por que alguns indivíduos conseguem sair desses eventos sem sequelas profundas, enquanto outros carregam marcas por muitos anos ou até por toda a vida. “Isso depende da capacidade de cada um de retornar ao estado de equilíbrio anterior ao evento traumático, da sua resiliência. Assim como um teve pneumonia e outros não, a reação psicológica também varia”, diz Teresa Negreiros, professora de psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). “Mas é certo que não voltarão a ser os mesmos”, diz ela.

Diferentemente dos sobreviventes dos Andes, os mineiros vivem na era da fama instantânea e terão de aprender a lidar com isso. Eles eram trabalhadores anônimos e agora são o centro das atenções. Na prática, a vida deles já mudou: receberam ofertas de férias pagas na Grécia, cheques-presente de US$ 10 mil, convites para assistir aos jogos de clubes de futebol como Real Madrid, da Espanha, e Manchester United, da Inglaterra. São mimos inimagináveis antes do desabamento da mina em 5 de agosto. “O fato de serem tratados como celebridade pode ter efeitos positivos, como elevação de autoestima, e negativos, devido ao caráter efêmero da fama”, diz Teresa, da PUC. “Em breve, eles cairão no esquecimento. Se não estiverem preparados, a sensação de desamparo pode vir de forma violenta.”

Nas primeiras horas fora da mina já se notavam reações distintas entre os 33 heróis e suas famílias. Houve críticas a algumas delas que, antes mesmo de ver o seu mineiro sair da Fênix, já haviam fechado contratos para vender os direitos de sua história a empresas de comunicação. Mas eles pretendem explorar a marca “33” juntos. Um escrivão foi chamado para redigir um contrato. O drama chegará às telas. O cineasta Rodrigo Ortúzar roda um documentário no local e a história tem tudo para seduzir Hollywood. A matéria-prima poderá ser os relatos do 15º mineiro resgatado, Victor Segovia, que escreveu um detalhado diário. “Quando durmo, sonho que estou em um forno”, dizia. Alguns já decidiram fazer mudanças na vida: Esteban Rojas prometeu casamento à mãe de seus três filhos, assim como Samuel Ávalos jurou à namorada subir ao altar. Outras guinadas devem-se ao destino. Yoani Rojas, por exemplo, viu tornar público o fato de ter mulher e amante e Carlos Contreras descobriu que será pai. Há ainda os que preferem manter tudo igual, na medida do possível. O boliviano Carlos Mamani, o quarto a sair das profundezas, recusou a oferta de casa e trabalho na Bolívia feita pelo presidente Evo Morales. 

Há tempos que especialistas em comportamento humano se debruçam sobre dramas como o do grupo Los 33, em que pessoas têm a vida e a rotina alteradas drasticamente por uma força maior e depois precisam retornar à normalidade. Sabe-se, por exemplo, que o tipo de trauma sofrido tem relação com o prazo de recuperação. “As pessoas tendem a sair melhor de catástrofes naturais, como um desabamento ou enchente, do que de um sequestro em que foram ameaçadas de morte”, exemplifica José Toufic Thomé, coordenador do programa de intervenções em catástrofes da Associação Brasileira de Psiquiatria. No casos de sequestro, a magnitude das sequelas a médio e longo prazos também sofre influência do grau de crueldade com que a vítima foi tratada, a quantidade e a qualidade das ameaças recebidas.

Raptada aos 21 anos, Paula Cristina de Antônio, hoje com 32, diz que levou anos para superar o trauma, embora até hoje não deixe os filhos brincarem na calçada, andarem a pé na rua ou irem ao shopping com a avó. Ela passou 29 dias em um quartinho de quatro metros quadrados onde a única janela era coberta por madeira e plástico preto. Vivia sob a luz de um lampião. Quando foi solta após o pagamento de um resgate de R$ 100 mil, estava tão debilitada que mal podia ficar de pé. “Eu passava o tempo lendo. Quando acabava, lia de novo. Ficava sem fazer nada, deitada, olhando para o teto. Você desliga, fica como um zumbi, não pensa em nada e quando cai em si fica com medo de morrer. Perde a noção do tempo, de calor, de frio”, diz ela. Paula se alimentava com uma arma apontada para sua cabeça e ouvia as ameaças de estupro que eram feitas do lado de fora do quarto.

Depois de libertada, resgatar a rotina não foi fácil. Paula diz que ficou três dias sem dormir porque estava totalmente neurótica. “A cada cinco minutos eu acordava sobressaltada, para confirmar se estava em casa mesmo. Tinha medo de entrar alguém armado dentro do quarto”, con­­ta. Por um bom tempo, não saiu de casa, nem sequer pisou na calçada. Decidiu trocar São Bernardo, no ABC paulista, onde todos a conheciam e os sequestradores sabiam onde encontrá-la, por Resende (RJ). “Fiquei três anos lá e minha casa tinha grade até o teto, janela com cadeado, alarme, tudo”, diz ela. “Mas o trauma acompanha.”

É certo que, quanto mais a situação inesperada se perpetua, maior é o risco de a pessoa ficar emocionalmente fragilizada. O grau de dano, porém, só pode ser dimensionado ao longo do tempo. “Em geral, o tempo médio de recuperação é de um mês”, diz Marcelo Feijó de Mello, coordenador do Programa de Atendimento a Vítimas de Violência (Prove), da Universidade Federal de São Paulo. E ainda que muita gente possa atravessar esse período apenas com alterações leves de humor, como uma dose de euforia por reencontrar a família, é comum ter insônia, acordar no meio da noite com pesadelos, ficar irritado ou sentir dificuldade de concentração.

Para Nabil El Sanadi, referência mundial em medicina de emergência e chefe do hospital Broward Health, em Fort Lauderdale, nos Estados Unidos, os mineiros poderão ter alguma desorientação em relação ao tempo por causa dos 70 dias de ausência de luminosidade. “Isso leva à desregulação dos ritmos do corpo regidos pelo ciclo noite-dia”, explica o especialista. No entanto, o fato de eles terem treinamento anterior para o trabalho na mina, sendo que alguns lidavam com esse tipo de ambiente há mais de três décadas, conta pontos a favor deles. “O treino condiciona o cérebro a responder melhor a essas necessidades”, diz Pedro Ribeiro, coordenador do Laboratório de Mapeamento Cerebral e Integração Sensório-Motora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Segundo os especialistas, quando a pessoa apresenta algumas reações por mais de 30 dias, existe a chance de ter desenvolvido o transtorno de estresse pós-traumático. “Neste caso, precisa de ajuda especializada”, diz a psicóloga Luciana Mazorra, do Instituto 4 Estações, especializado no atendimento a situações de luto e trauma. De acordo com ela, até 25% das pessoas expostas a situações traumáticas manifestam o transtorno. “Ele pode aparecer logo ou anos depois”, complementa o psicólogo Eduardo Ferreira-Santos, especialista em traumas e estresse pós-traumático.

O polonês Ben Abra­ham, 86 anos, só conseguiu elaborar o trauma pelo qual passou dez anos depois. Durante a Segunda Guerra Mundial ele viveu de forma sub-humana, passou por quatro campos de concentração e teve quase 200 parentes mortos pelos nazistas. “A força para lutar pela vida vem da determinação”, diz ele, que criou uma estratégia para não sucumbir. “Imaginava uma data na qual os nazistas seriam derrotados. Quando o dia chegava e a situação não mudava, pensava em uma nova data.” Na última vez que fez isso ele imaginou o dia 1º de maio de 1945. Neste dia os judeus foram libertados. Abraham passou seis meses em hospitais aliados, pois quando saiu do campo de Auschwitz pesava 28 quilos e estava tuberculoso e com escorbuto. “Depois vivi clandestinamente em Israel por dez anos sem assimilar direito o que tinha me acontecido”, diz.

Ele escolheu o Brasil para viver por causa da tolerância religiosa e racial do País. Chegou em 1954 e se casou com uma brasileira. “Ela me contou que durante a noite eu gritava muito em sonhos”, relata. Antes ele costumava acordar molhado de suor e gelado, mas não se lembrava de nada. Certo dia, assistiram à peça “Anne Frank”, sobre a garota judia que viveu escondida na Holanda durante a guerra. Ele ficou doente por semanas depois disso. Foi então que decidiu expurgar suas dolorosas lembranças. Incentivado pela família e amigos, escreveu uma biografia. “Quando coloquei o ponto final do meu primeiro livro, em 1972, exorcizei todo o meu passado”, afirma. Assim como Abraham, cada sobrevivente da mina chilena encontrará sua própria forma de lidar com a dor.


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