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Data: Quinta-feira, 02 de abril de 2009
Hora: 08h08
Seção: Colunistas
Autor: Vinicius Jatobá
Fonte: ____
Fotos: Mariusz Kubik/Wikipedia/Divulgação
"Minhas Viagens com Heródoto", Ryszard Kapuscinski
02/04/2009

Kapuscinski em maio de 1997 na Polônia. Literatura ou jornalismo?

 

Os sonhos são a gramática submersa do mundo, e não há sonho que não encontre morada numa biblioteca, nem livro que não tenha num leitor o amor que lhe corresponda. Àqueles que amam a leitura os livros abertos sabem as janelas, e em suas palavras a curiosidade dança. Os que de muitos livros se alimentam têm suas janelas com vários frisos; foram tantos de olhos abertos como no macio apogeu do leito; e quando finalmente velhos são idosos donos felizes de muitas velhices: as aventuras que leram vibram em suas retinas com a mesma cor daquilo que sofreram, muitas das cicatrizes que doem nas noites frias nunca irromperam a pele.

Se isso acomete o leitor enamorado, ao extremado que é todo escritor deitar a narrativa de suas vidas é arrancar dos escombros acumulados da estante os tomos fundacionais de suas vocações, ou até mesmo aquele único livro que lhe iluminou o existir. O farol de Kapuscinski foi Heródoto, e Minhas Viagens exercita essa forma discreta de amor entre iguais que é o elogio extremado.

Ryszard Kapuscinski é uma personalidade única no meio editorial europeu. Apesar da barreira ríspida da língua polonesa suas inventivas reportagens, que misturam recursos narrativos do melhor romance contemporâneo com os usuais procedimentos da prosa jornalística, deram-lhe renome continental e reconhecimento mundial.

Kapuscinski criou relatos importantes que cobrem desde as tensas e confusas guerras civis africanas à emotiva e espantosa queda na União Soviética; e mesmo sem jamais ter escrito sequer uma linha de ficção, tornou-se com seu trabalho criativo e atuante um dos mais respeitados homens de letras do cenário europeu e um perene candidato ao Nobel de Literatura, e merecedor legítimo da láurea.

Porém, nem tudo é o céu. Muitos dos detratores de Kapuscinski questionam justamente o estatuto paradigmático de jornalismo de seus livros. São inexatos e desarticulados e imprecisos, frouxos ao pensamento acidental e caprichoso, possuem parágrafos de memorialismo até gratuito que nodoam o trovar neutro usual das reportagens, e muitas vezes simplesmente aportam em destinos que mal se casam com seus pontos de partida.

No entanto, nesses lapsos há fortaleza. Seus livros são compostos na lentidão do conforto da casa polonesa e não no calor agitado das revoluções e guerras que cobriu como correspondente internacional; são frutos de um segundo olhar, os desenhos gerais que esboçam o esforço de uma nova compreensão. Seja na deslumbrante narrativa de vozes entrecruzadas que reviram o corpo necrosado da tirania de Haile Selassié I (O Imperador), na acumulação de relatos sobre gente simples do continente africano (Ébano), ou na crisálida plural de fragmentos e ruínas e sonhos abandonados e abortados do fenecido colosso comunista russo (Imperium), o que Kapuscinski faz é animar a potência da fala dos cotidianos anteriores demolidos pelos caprichos da história. Seus livros podem até não ser paradigmático como reportagens, mas são lapidares, e essenciais.

Contudo, e até infelizmente, Minhas viagens com Heródoto não é um exemplar típico do jornalismo de Kapuscinski; muito menos é suas memórias ou a descrição detalhada do nascimento de uma vocação. Minhas Viagens é uma homenagem a um homem magnífico e admirável, uma leitura crítica abrangente de seu grande livro, e um enamorar por seu modo de vida e visão de humanidade.

O peregrino Heródoto, que sentiu sob suas solas calejadas todo calor pedregoso do mundo de seu tempo, em sua velhice sedentária na colônia ateniense de Turio criou a impressionante massa verbal que compõem História. Nessa ambiciosa narrativa, Heródoto se propôs compreender todos os veios que antecederam e definiram as Guerras Médicas, assim como se ocupou com o enredo exato das batalhas e com suas macilentas consequências.

Ao passo que descreve algumas das dificuldades do seu início de carreira como correspondente internacional, Kapuscinski destrincha a mente de Heródoto: seu estilo persuasivo e conciso, sua forma de incorporar os dados de suas inúmeras pesquisas na intricada narrativa, a estrutura algo encantatória do enredo, o esforço delicado de conjugar os modos conflitivos de ver o mundo dos diferentes povos em guerra. O lugar do indivíduo diante da engrenagem do moinho da história; a palpitação azeda que toda uma nação sente quando assombrada pela morte.

Assim, Minhas Viagens narra o que o pai da História ensinou ao filho dileto do jornalismo. O sangrento mundo descrito por Heródoto deu a Kapuscinski a sabedoria para ir além do mero ver, deu-lhe a providência de enxergar nos meandros convulsivos do espaço africano e asiático em que trabalhava pequenas e discretas metáforas de um palco muito maior. Ensinou que é no conforto da casa polonesa, distante dos cadáveres e da miséria, do cheiro agreste da fome e do medo, mergulhando na memória um olhar de duração vasta, que a prosa pode vencer o caos convulsivo da história perguntando-se as mesmas perguntas, e eliminando sem dó as mesmas respostas.

Vinicius Jatobá é jornalista cultural e mestre em Estudos de Literatura pela PUC-Rio. Colaborou em vários suplementos e revistas, e atualmente escreve sobre livros em jornais.


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