Tipo de Clipping: WEB
Data: 29/12/2016
Veículo: Valor Econômico
Prever como eventos correntes passarão à história é extremamente difícil. Lembro-me, por exemplo, do Plano Cruzado, em 1986. Em meio à euforia que marcou a queda inicial da inflação, as análises da época estavam longe de suspeitar que aquele poderia vir a ser o primeiro de uma série de planos anti-inflacionários fracassados, e que a megainflação só viria a acabar mais de oito anos depois, com o Plano Real.
Como a história econômica vai tratar 2016? Será que marcará o continuado declínio da economia brasileira, cujo PIB vem caindo há mais de dois anos? Ou, ao contrário, será 2016 lembrado como o ano em que nossa economia iniciou uma virada histórica, confrontando seu principal problema, o descontrole fiscal?
A excelente surpresa deste ano foi aprovação da PEC do teto dos gastos. Como se sabe, a emenda constitucional limita a taxa de crescimento do orçamento federal à inflação, impedindo que os gastos públicos continuem a ganhar espaço crescente no PIB, como vinha ocorrendo há décadas. O problema é que a emenda apenas institui um teto, mas a evolução dos componentes dos gastos públicos obedece a regras próprias, incompatíveis com o novo teto. Ainda que, a curto prazo, a PEC não implique sacrificar o crescimento dos gastos, será indispensável, nos próximos anos, mudar radicalmente a dinâmica de crescimento dos maiores gastos públicos.
A principal fonte da explosão dos gastos públicos é a Previdência Social, cuja proposta de reforma foi recentemente encaminhada pelo Executivo ao Legislativo, também através de uma PEC. Esta, em contraste com a PEC do teto, trata de mudanças bem palpáveis a todos os trabalhadores que ainda não se aposentaram1. Por isso, já está gerando fortes reações contrárias, o que deve se acirrar em 2017, quando a reforma da Previdência for debatida no Congresso.
Dependendo das modificações introduzidas, a reforma pode vir a se revelar insuficiente, sinalizando que o regime fiscal não mudou. Ou pode, alternativamente, reforçar o sinal dado pela aprovação da PEC do teto de que o Brasil decididamente se afasta do abismo fiscal com que ora se depara.
O otimismo advindo da aprovação da PEC do teto foi fortemente abalado pela decisão da Câmara dos Deputados em aprovar a renegociação das dívidas estaduais sem impor as indispensáveis contrapartidas de mudança dos regimes fiscais vigentes em vários Estados. Os problemas estaduais não são novos. Uma das principais reformas, sem a qual a consolidação do Plano Real não teria sido bem-sucedida, foi a renegociação das dívidas estaduais. Na época, o processo estendeu-se por uma década, e conseguiu reestruturar as finanças estaduais até que os governos do PT solaparam as bases do regime fiscal, permitindo que os Estados voltassem a aumentar seu endividamento para pagar gastos correntes.
Hoje a maioria dos Estados novamente se defronta com regimes de previdência insustentáveis e excessivos inchaços das folhas salariais, muitos acima do limite da LRF (lei de responsabilidade fiscal). É difícil antever que tais problemas possam vir a ser corrigidos sem que os deputados federais emprestem seu apoio às duras medidas que se fazem necessárias.
Assim como um fumante inveterado que, apesar de saber dos males causado à saúde, não consegue largar o vício, a sociedade brasileira não logra se afastar do populismo fiscal. Para todos os males e problemas, a solução quase sempre gera um aumento do gasto público, tal qual o fumante que recorre ao cigarro para pretensamente aliviar a tensão.
Também à semelhança do fumante, não conseguimos antever as possibilidades de melhora de vida que poderiam ser trazidas pelo fim do vício. A melhora mais importante, talvez comparável ao fumante poder correr uma maratona, é a redução das taxas de juros, e a capacidade de utilizar a política monetária como instrumento anticíclico. Esse instrumento é fundamental no mundo todo, mas, no Brasil, vive embotado pelo continuado expansionismo fiscal, que obriga o BC a manter uma taxa de juros extremamente elevada para controlar a inflação.
As principais economias internacionais usaram o expansionismo monetário ao máximo, estando há anos se defrontando com a impossibilidade de reduzir ainda mais as taxas nominais, algumas abaixo de zero. Já o BC brasileiro dispõe de enorme espaço para corte de juros. Com a aprovação de uma reforma da Previdência que consolide a mudança do regime fiscal, o BC vai poder usar a munição de expansão monetária de que dispõe sem medo de reavivar a inflação, sobretudo agora que recuperou sua credibilidade anti-inflacionária.
Neste cenário benigno, 2016 passaria à história como o ano da virada. Naturalmente, vários problemas continuarão conosco. Não teremos resolvido nossos problemas com a má qualidade da educação dos nossos jovens, nem os problemas do nosso sistema de saúde. Temos que enfrentar uma extensa agenda microeconômica que ajude a deslanchar o investimento, promovendo mais competição, tanto doméstica quanto externa. Precisamos aumentar a eficiência da gestão pública, em todos os níveis, além de várias outras reformas. Mas, tal qual o fumante que conseguiu parar de fumar, teremos uma satisfação enorme ao finalizar a primeira maratona.
Um excelente 2017 para todos!
1 - Um vídeo curto muito instrutivo sobre a necessidade da reforma da previdência foi recentemente colocado por Darcy Francisco Carvalho dos Santos no youtube ("Será que há déficit na previdência?).
Marcio Garcia, Ph.D. por Stanford, é professor do Departamento de Economia da PUC-Rio e escreve neste espaço uma sexta-feira a cada mês.