Tipo de Clipping: WEB
Data: 07/12/2014
Veículo: Gazeta de Alagoas
Rio de Janeiro, RJ – Entre os heterônimos de Fernando Pessoa, Cleonice Berardinelli jura que não tem um mais querido. Mas a professora diz que, neste momento, está lendo Álvaro de Campos, e, por isso, tende a preferi-lo. Maria Bethânia concorda. “Ele não tem limite, controle, é solto, nítido, poético. É o que mais me toca”, justifica a cantora, que inclui o autor português nos roteiros de seus shows desde que o conheceu, em 1967, pelas mãos do diretor Fauzi Arap (1938- 2013).
As duas falam de Pessoa, Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis como quem cita amigos íntimos. Para promover o DVD (O vento lá fora), elas se encontraram na PUC-Rio, na qual Dona Cléo, integrante da Academia Brasileira de Letras desde 2010, é professora emérita – ela tem 98 anos e orientou teses até poucos anos atrás.
São 38 poesias e 64 minutos de enlevo, provocado não só pela potência existencialista dos versos, mas também pela interpretação das duas – Dona Cléo mais contundente, Bethânia, mais doce –, pela beleza do preto e branco, as sutilezas escondidas à primeira leitura, as inserções musicais (a primeira cena é de Bethânia ao piano).
Pergunta. Qual o lugar de Fernando Pessoa e de sua poesia num século em que tudo é rápido demais e descartável?
Cleonice Berardinelli. O sucesso do Fernando Pessoa ultimamente tem sido tão flagrante... Basta ver as coisas que têm surgido por causa dele, para se entender a leitura dele. Tudo isso dá o valor que ele tem, comprova como é importante. Na poesia portuguesa temos um estendal de poetas, com dois mastros mais altos, que sustentam a corda: no século 16, chama-se Luís Vaz de Camões; no século 20, chama-se Fernando Pessoa.
Maria Bethânia. É o poeta da minha vida. O mundo faz muito barulho, sempre fez, mas está fazendo mais. Silêncio faz falta. Onde cabe Pessoa num momento tão poluído sonoramente? Ele cabe porque a força de um poeta é essa, a força silenciosa, é ser contra a maré. O poeta vê onde ninguém vê, fala do que ninguém está sabendo que existe. Como sou cantora, fico muito nesse mundo de DVD, tudo é DVD, tudo é muito forte, grande. Acho um oásis existir isso. É a cara do Brasil, que tem essas escapatórias, tem floresta, praias, rios de que ninguém sabe.
Então o DVD vai contra a maré?
Bethânia. Vai do jeito dele, na maré dele, remando com os remos dele. Acho estranho quando botam que a poesia é contra a maré. Acho que é algo cotidiano. Existe um DVD de leitura de poesia porque a poesia existe, a todo tempo. Mas entendo o que você está falando, parece que a gente é maluca por ter feito isso. Quando vi a professora passando de um heterônimo para outro com tanta intimidade, de um jeito tão fácil de você aprender, quis registrar. O ensino nas escolas é tão padronizado, que pensei: vamos fazer isso e colocar na escola pública.
Cleonice. Mexer em Fernando Pessoa é sempre um prazer, um prazer sentido, quase chorado. Começa que ele não é um, ele é pelo menos quatro. Me perguntam de qual eu gosto mais... É daquele que estou lendo na hora. Neste momento, é Álvaro de Campos, porque ele é o divã de Fernando Pessoa. A pessoa deita e diz tudo que tem dentro da cabeça e do coração. Não precisa raciocinar “posso dizer? Será conveniente?”. Enquanto Caeiro é oposto dele. É um senhor que não fez curso nenhum, só tem o primário. Mas, em compensação, quem entende de natureza é ele. Então diz “sou um guardador de rebanhos”, mas imediatamente diz que “o rebanho é os meus pensamentos/ e os meus pensamentos são todos sensações/ Penso com os olhos e os ouvidos/ E com as mãos e os pés/ E com o nariz e a boca”. É uma beleza, né? É o apoético por natureza: ele sente com a boca e o nariz?